21 de março de 2010

Reflexão/ Exposição/ Proposta

Gostaria de expor o meu ponto de vista sobre a situação da formação dos nossos jogadores e os reflexos que provocam no escalão maior. É um documento com ideias claras mas também com questões que deixo para reflexão. Espero que mexa na estagnação qualitativa a que chegámos e que aponte caminhos concretos no que julgo que deve mudar. Não pretendo denegrir o trabalho de ninguém, porque eu também fui participante activo deste ciclo, que agora, julgo que já teve o seu tempo. Parece-me que urge mudar, espero com este documento contribuir positivamente para o desenvolvimento do nosso Rugby.

O Presente

Tirando uma fotografia ao desenvolvimento do jogador nacional, deparo-me com uma análise clara que em cerca de 80% dos jogadores de alto nível existem vários aspectos fulcrais com défice de aprendizagem. As mesmas reflectem-se numa: incapacidade de placagens ofensivas - sobretudo no jogo aberto, incapacidade de efectuar uma leitura de jogo completa (visão periférica limitada que impede a melhor tomada de decisão), um frágil perfil psicológico, uma incorrecção permanente nas linhas de corrida de ataque, falta de comunicação.

Fazendo uma análise sobre o processo de desenvolvimento desses jogadores, verifico que o inicio da sua formação coincide com a criação das escolas de rugby, que permitiu semi-profissionalizar as equipas técnicas e com a alteração do sistema de competição para os moldes vigentes.

Identificando as falhas dos jogadores formados debaixo deste ‘regime’ concluo que é necessário fazer alguma alteração. Ou ao nível da formação dos técnicos e/ou ao nível do sistema de competição.

Quanto à formação dos técnicos, julgo que tem existido um esforço claro da FPR, da ARS e dos clubes em formarem os seus técnicos, contudo parece-me escasso, mas em parte compreensível face as despesas que estão inerentes a manter uma equipa sénior altamente competitiva (apesar de ter a opinião que os investimentos não são aplicados no sentido do desenvolvimento do jogador português). Ou seja, dever-se-ia continuar a investir (de preferência mais) nessa área.

Pensando no sistema de competição das camadas jovens, verifica-se que existem convívios e torneios em festa, bem organizados (S14/S12/S10/S08), onde se agrupam no mínimo 3 equipas por ‘jornada’. De seguida, entra-se directamente para o mundo da ‘pré-competição’ (S16) com um campeonato nacional, onde já se exige um domínio completo das dimensões do campo e das regras subjacentes às linhas do mesmo, bem como uma coerente organização colectiva nas fases estáticas.

Dito isto, parece-me premente que é necessário alterar o sistema competitivo de modo a podermos evoluir para um melhor desenvolvimento dum futuro atleta de alto nível (não podemos nos esquecer que o fundamento do desporto federado é a competição).

Não que o modelo competitivo actual não tenho sido uma excelente opção no seu tempo. Foi ele que trouxe um número maior de praticantes à modalidade, que atraiu apoios através dos eventos bem organizados. Em termos técnicos, trouxe: uma oposição ao adversário por todos os jogadores em campo (já se vê muito pouco jogadores não placadores), uma capacidade superior ao nível do ruck (contudo demasiado estática e lenta) e uma melhoria na defesa do perímetro curto. Ou seja, sou da opinião que teve um papel fundamental na solidificação do rugby jovem e na combatividade dos jogadores em geral.

Julgo que é altura de passarmos a outro ciclo, um ciclo que possa manter e solidificar as características positivas alcançadas no actual, mas que permita o desenvolvimento do atleta no sentido de, a longo prazo, vir a colmatar as deficiências que se verificam no jogador de alto nível actual.

Expressar-me-ei apenas sobre as minhas observações, diálogos e reflexões no que concerne ao modelo competitivo das escolas/academias de rugby (< S14) e no reflexo que tem no escalão S16 (escalão este que deveria estar na alçada das associações regionais, dado estar mais enquadrado no esquema de formação integral do atleta do que no esquema de competição da FPR), escalão onde se deve concluir a preparação do jogador para a competição. É o resultado deste trabalho que futuramente irá garantir uma reciclagem constante de jogadores de alta qualidade no escalão sénior. Escuso-me a comentar algo sobre os escalões de competição (S18, S21), por considerar esses escalões como momentos de potenciamento e especialização das capacidades dos jogadores (essas dependem apenas das habilidades adquiridas na sua (formação).

A Mudar

Existem vários aspectos do modelo competitivo actual dos < S14/ S16 que julgo que poderão ser melhorados para corrigir os defeitos mencionados e aumentar a qualidade dos jogadores, logo a qualidade de jogo, que por sua vez será mais competitivo; logo mais atractivo, que por sua vez, se bem ‘marketizado’,
gerador de mais e maiores receitas (o factor económico e incontornável no desenvolvimento desportivo).

· Dimensão do campo/ N.º de jogadores

Existe a necessidade de aumentar significativamente as mesmas. Hoje em dia, temos jogos de miúdos onde apenas se transporta a bola ao contacto frontal sem tentativa de atacar o espaço e com muito poucos passes, provocando naturalmente uma enorme sequência de rucks lentos, que desenvolvem capacidades técnicas ao nível do confronto físico (oposição), da organização à volta do ruck e consequentemente a defesa à volta do mesmo.

Verifica-se também a efectuação de muitos passes sem progressão no terreno (‘bola à ponta’), que em raras excepções (individualismos) termina atrás da linha de vantagem, na linha lateral ou num pontapé que entrega a bola ao adversário sem possibilidade de recuperação e sem preocupações efectivas de conquista de terreno (tal sucede porque não existe profundidade nem largura suficiente no campo para estimular a visão periférica, nem distancia suficiente entre linhas defensivas, para o jogo ao pé ser passível de ser uma opção lógica na tomada de decisão). De facto não encontro pontos positivos, além dos discriminados no parágrafo anterior.

Ao aumentarmos o tamanho do campo logicamente termos que aumentar o n.º de jogadores (a questão fundamental não é o espaço ocupado numa linha, mas sim o m2 por jogador).

A questão do aumento das dimensões, no meu ver, irá estimular os jogadores para um tipo de jogo mais adequado às características do jogador português e às necessidades da SN em confrontos internacionais, a
exploração dos espaços em oposição ao confronto físico directo. A meu ver Portugal está para a Europa B, como a NZ está para o mundo.

Este aumento substancial da área de jogo e jogadores irá:

1. Corrigir os defeitos de linhas de corrida existentes, pois naturalmente surgirão ‘buracos’ provocados pelo aumento do m2/ jogador.

2. Melhorar a técnica de passe pois o aumento de espaço irá dar tempo para o ‘jogo de passes’ e obrigará a execução de passes mais longos que permitam a utilização de toda a largura do campo

3. Estimular a organização defensiva devido à necessidade de constantemente ter que se expandir e encolher para fazer face à cobertura do campo.

4. Aumentar a responsabilidade defensiva individual, dado que uma falha não será imediatamente corrigida por outro.

5. Aumentar a capacidade da visão periférica dos jogadores, porque passará a existir vazios entre linhas defensivas, que por sua vez provocam flutuações da mesma, logo a ocorrência e detecção/correcção de falhas. (atacantes/ defensivas)

6. Provocar a utilização do jogo ao pé táctico, pois torna-se realmente numa ‘arma’ útil. Como consequência da sua utilização ter-se-á que utilizar o contra-ataque do 3-de-trás.

7. Aculturar tacticamente os jogadores, pois a ocupação do espaço terá que ser mais organizada, tal como a exploração do mesmo passará a ter que fazer um sentido lógico na construção do jogo e da tomada de decisão.

8. Aproximar a tomada de decisões e a exploração táctica à realidade do jogo definitivo (neste momento corremos o risco de estar quatro anos a condicionar a tomada de decisão a um jogo que eles não jogarão)

9. Aumentar as capacidades atléticas dos jogadores, pois estaremos a proporcionar espaço que frequentemente permitirá sprints com mais de 10m para todos os jogadores, numa idade em que a janela de oportunidade de potenciação física é a velocidade.

· Dimensão do contacto

Julgo que devemos tomar atenção ao contacto nos S8, de facto não tenho uma total opinião formada, contudo deveríamos pensar se não será melhor neste escalão termos a placagem como um toque a duas mãos.

Não só pela eventual falta de maturidade de todos os participantes, como da aproximação egoísta que os miúdos têm ao jogo (onde o passe é a primeira ou a última opção, dependendo do receio pelo contacto)

Dito isto, parece-me que a placagem só deveria ser autorizada em equipas com uma noção do jogo mais adquirida.

Outra consequência a verificar-se, será o reenfoque do passe numa maior percentagem de treino deste escalão, o que me parece positivo.

· Proposta de estrutura de jogo

Como proposta de alteração para os escalões < S14 apresento o seguinte quadro, baseado na NZRFU com algumas adaptações:



· Dimensão da competição

Sou da opinião que a intensidade da competição ao longo da carreira dum jovem desportista molda o seu perfil psicológico. A ‘arte’ está em encontrar a medida certa dessa intensidade, é nesse balanço que se consegue formar atletas psicologicamente fortes.

O formato actual da competição não me parece o mais adequado a um aumento gradual da carga competitiva ao longo do desenvolvimento da formação dos jovens atletas. Existe uma grande diferença de intensidade dos S14 para os S16.

Se nos S16 já se joga no regime de competição ‘definitivo’ (jornadas regulares), parece-me que é a jusante que devemos efectuar alterações.

Estas alterações vão no sentido de retribuir uma competitividade perdida ao longo dos últimos anos. Temos que entender que o nosso sector desportivo (federado) tem como objectivo principal participar numa competição onde a vitória é parte integrante da mesma e onde todos querem chegar, o nosso objectivo não é criar população activa saudável (saúde pública).

Temos que reconhecer as nossas características como sector desportivo e conduzi-las de acordo com o escalão etário em causa. O problema da competitividade precoce não está na intensidade do modelo competitivo, este só surge se a liderança deturpar as etapas de desenvolvimento de um jovem atleta.

Ou seja, face ao modelo actual, julgo que combatemos a competitividade precoce no campo errado, não são os miúdos que têm que ser limitados à exploração das suas capacidades e satisfação de ambições, são os formadores que têm que explorar e provocar o aumento das capacidades dos miúdos sabendo conduzir as suas próprias ambições.

O cerne da questão não são eles, somos nós que tendencialmente nos projectamos nos actos deles. Nós não ganhamos nada… são os jogadores que ganham. Sobretudo, eles têm que ganhar um futuro válido como jogadores, sob pena de nunca se sentirem plenamente integrados no nosso grupo social. (Será por isto que a maioria dos ex-praticantes de Rugby são desenraizados da modalidade?)

É necessário criar um hábito de competição atractivo e condizente com as ambições dos miúdos.

Ir jogar ao fim-de-semana num torneio onde o real valor dos resultados é reduzido a pouco mais que nada é escasso e não promove qualquer espírito de mentalização para o jogo. É Necessário criar um ambiente que promova pensar em Rugby fora do campo (cultura rugbístca), tal sucederá se no fim-de-semana se realizar um ‘duelo’.

Ter vários adversários no fim-de-semana não permite aos miúdos focalizarem com claridade o que fazer perante este ou aqueloutro. Nenhum miúdo < S14 tem capacidade para pensar/ reflectir em mais de um adversário e consequentemente nas acções que o próprio poderá tomar no dia de acção.

Dito isto, julgo que deveríamos progredir para o modelo competitivo definitivo e começar a criar jornadas de jogos únicos. O sistema de juntar várias equipas (em múltiplo de dois) por jornada poderá continuar, contudo em cada jornada cada equipa confronta-se apenas com uma outra (i.e. - < S14: grupo de 4 equipas a 2 voltas, cada jornada é recepcionada por 1 clube, 2 jogos completos, duração máx. útil. do campo> 2:30)

O facto de termos jogos de 2 partes contra a mesma equipa vai possibilitar sobretudo uma real aquisição de conhecimentos e respectiva aplicação, pois nestes escalões normalmente o conhecimento do adversário é efectuado na 1.ª parte e as respectivas adaptações na 2.ª parte. Actualmente verifica-se um constante desajustamento de conhecimentos adquiridos e aplicação dos mesmos, pois a equipa y é diferente da equipa x. Outros factores que ganharão serão: quantidade de tempo de jogo (potenciamento fisico) e maior participação de número de jogadores (satisfação de maior número de participantes)

Com isto não se pretende eliminar os convívios da cena nacional, julgo que são festas que se devem celebrar em momentos e datas comemorativas (i.e.– 5 Outubro, Natal, jogos internacionais, finais de competições nacionais seniores ou superiores), bem como, quando enquadrado noutro sector desportivo/ social (i.e. – escolas, bairros problemáticos) e para clubes emergentes.

Outro aspecto que urge modificar é os escalões competitivos. Devido ao aumento exponencial de jogadores nas academias dos clubes, julgo que deveríamos criar sub-escalões dentro dos escalões; a começar nos S16
para baixo. Ou seja, consoante as possibilidades de cada clube, criar a competição de S15, S13, S11, S9 e S7 e terminar com a classificação de A e B, esta última parece mais discriminatória e revela uma intenção ingénua de precocidade competitiva. Os clubes que não tiverem capacidade para apresentar dois sub-escalões, terão que ter a sua representatividade no escalão maior.

Sugiro isto porque apercebi-me da flutuação de nível que grassa nos vários escalões dos nossos clubes e na quebra geracional de jogadores de qualidade que chegam aos seniores. É recorrente ver que determinados clubes têm escalões muito bons/ bons e outros muito fracos/ fracos. Que existem anos que trazem à equipa sénior i.e. 6 jogadores de qualidade, dos quais só 2 a 3 se aproveitam e dos quais só 1 tem realmente alta qualidade e outros anos onde não há 1 jogador que seja de alta qualidade. Ou seja, em dois anos de ‘recrutamento’ sénior conseguimos apenas criar 1 jogador de alta qualidade.

Parece-me que juntar os melhores/ piores durante uma época, e na época seguinte os melhores mais novos verem-se obrigados a jogar com os piores da sua idade cria uma constante instabilidade no crescimento desportivo dos miúdos, e, eventualmente uma espiral negativa na qualidade do jogador português.

Além disso, impede que ocorra uma aquisição de reconhecimento de acções padrão que produzem tomadas de acção/ decisão condizentes com o jogo colectivo e que se reflectem ao longo de toda a carreira de um jogador.

Mas, sobretudo não promove a criação dos primeiros laços afectivos sociológicos extra-familiares que em qualquer percurso desportivo e com uma grande incidência no nosso jogo, são essências à formação do indivíduo, laços estes que se bem alimentados irão garantir um maior apoio emocional, fundamental na estruturação completa de um atleta.

· A Selecção da ARS S14

Julgo que se deve fazer uma séria reflexão sobre este tema. A criação e consolidação de laços afectivos nesta idade são muito limitadas e se exigese que os miúdos sejam alunos brilhantes, aprendam inglês e/ ou outra tarefa extra-curricular (normalmente situações com pouca ligação afectiva, mas que ocupam grande parte da exploração das capacidades dos miúdos, a ‘malta do bairro’ hoje em dia é residual - sobretudo nas cidades), sobra pouco espaço para haver capacidade de integração numa ‘tribo’ onde se exige dedicação, companheirismo, lealdade e competência.

Ao colocar os melhores noutra tribo, estamos a incitar sem intenção à quebra de todos os valores mencionados, o conflito é grande e a gestão de relacionamentos ainda não é clara nesta idade, parece-me adequado para S16 mas precoce para S14.

Não que este tipo de iniciativa não deve existir por parte da ARS, julgo é que deve ser no perfil correcto. Tal como são intitulados os treinos da ARS (treinos de aperfeiçoamento) é aí que deve ficar. A selecção de jogadores por quotas parece-me correcta, contudo deveriam ser na totalidade nomeados pelos respectivos clubes e não pela ARS.

Isto porque julgo que estes treinos devem ser direccionados a jogadores com melhor qualidade (tal como se verifica), mas para aqueles que realmente têm necessidade e melhorar o aspecto de que trata o treino de aperfeiçoamento.

Assim poderíamos realmente melhorar a falha dos bons para os tornar muito bons e não apenas confirmar (o que já sabemos) que aquele jogador é muito bom em determinada área.

Decidir

É um documento extenso que toca na maioria, senão na totalidade, do que andamos a fazer por nós.

Independentemente do que se aproveitar daqui e de facto se puser em prática, fico consciente que após longa reflexão alertei para a necessidade de reflexão/ mudança de atitude e sobre a formação dos futuros jogadores da SN.

Espero que tenha sido claro na exposição mas não hesitem se tiverem algum tipo de dúvidas.

Apresento uma proposta, pois não parece correcto criticar e não apresentar soluções.

Julgo que o documento vem a tempo para se fazer uma reflexão séria e efectuar jogos experimentais que comprovem, ou não, o que proponho.

Deixo assim o repto para ver se afinal as nossas gentes são dinâmicas ou se já se ‘sentaram no sofá’.

Abraço,

Paulo Murinello